Por Márcio Madeira
De um lado, o pesadelo.
Uma madrugada sem dormir, a falta de luz, o alto barulho da chuva vencendo
um silêncio de tensão compartilhada. Ta chovendo demais, ta chovendo
demais. Pela janela a luz de relâmpagos revela a rua alagada, enquanto o
estrondo e o chacoalhar de um carro que tentava escapar revelam o enorme
buraco escondido pela água escura. O dia amanhece, os olhos ainda exploram
os estragos visíveis, quando o som indescritível de uma avalanche anuncia
algo de grandioso acontecendo. O coração dispara, o olhar se volta para a
esquerda, e a consciência duvida do que os olhos estão vendo. Todo o morro
esta descendo. É muita, muita terra. O entulho some da vista, escondido
pelos prédios. Um forte estrondo é ouvido, surge uma gigantesca nuvem de
poeira. Não era encosta, não havia falhas na topografia nem tampouco casas
em local de risco. É mata nativa, reserva natural. Se ali está desabando,
então todo o resto já terá caído.
O pensamento se volta para os amigos que ali residem. Nomes, rostos.
Corremos para o telefone. Mudo. Ainda chove forte, mas é preciso ir lá ver.
Há lama e destruição por todos os lados, pessoas choram e correm. Na rua
anterior um verdadeiro rio impede a passagem, permitindo apenas ver um
caminhão dos bombeiros esmagado por entulhos. “Seis bombeiros morreram” –
alguém diz, aos prantos. Não era boato. Mais alguns minutos e a chuva para.
Podemos chegar mais perto.
Corpos passam em macas o tempo todo, bombeiros perguntam se alguém tem
experiência em primeiros socorros ou reanimação. É difícil saber qual a
melhor forma de ajudar. Amigos de infância estão debaixo de uma montanha de
lama e escombros, onde antes havia belas casas tradicionais. Uma grávida é
resgatada enquanto dá à luz um filho morto. Do outro lado da praça, a água
cobre carros e pontes, invade o shopping. Pessoas buscam lugares elevados,
cachorros nadam a seus lados. Há pânico e informações desencontradas por
todos os cantos. “A igreja de Santo Antônio está destruída”, “o teleférico
acabou”, “edifício tal está para cair”, “fulano de tal morreu”, “estrada
tal está interditada”, “tal bairro não existe mais”.
Uma volta pela cidade começa a dar a dimensão da tragédia, enquanto a luz
não volta e não é possível ver os jornais. A coisa foi grande, foi muito
grande. Devem estar tentando falar com a gente, querendo notícias. O drama
extrapola os limites da zona atingida. Não há como tranqüilizar amigos ou
parentes. Voltamos para casa. A comida na geladeira ameaça estragar. É
preciso fechar o registro de água, para que a lama e o esgoto não
contaminem o que resta na cisterna. É preciso economizar. Há pessoas presas
em elevadores, e a luz não voltará em menos de dois dias. A subestação foi
afetada, postes caíram, e há fios de alta tensão entre os escombros, onde
também há vazamento de gás. O comércio está fechado, hospitais estão
isolados e/ou destruídos, não há gasolina. Amigos se reencontram e
cumprimentam em silêncio. Não cabe perguntar se está tudo bem, é preciso
buscar novas formas de saudação.
O sol se põe, é preciso tentar dormir. Mas como? Bateria do celular começa
a acabar, na eterna busca por sinal. Lanternas e velas se esgotam apesar do
racionamento. O mundo fica cada vez mais escuro, somos todos cegos. A noite
se arrasta no medo de que volte a chover. Um banho rápido e gelado no
escuro talvez ajude a passar o tempo e a diminuir um pouco a sensação de
angústia e tensão.
O sol torna a nascer. Parentes de vítimas não se afastam dos montes de
escombros. Passaram a noite por lá. Não existem ônibus circulando, pessoas
caminham dias inteiros. O dinheiro é curto, bancos e caixas eletrônicos não
funcionam. Filas se formam nos poucos estabelecimentos que se atrevem a
funcionar. A entrada de pessoas é controlada, pois há medo de saques. Os
preços se multiplicam, uma única vela pode custar até dez reais. Revolta e
tristeza invadem a alma: “há necessidade disso? Já não sofremos o
bastante?”.
A presidente está na nossa rua, os helicópteros não param. “A coisa deve
ter sido ainda maior do que parece” – pensamos. Ainda sem luz, não temos
tanta noção. A cidade se enche de bombeiros, policiais, homens do BOPE, da
Guarda Nacional. O Exército também está aqui, é muita gente trabalhando. Na
praça ergue-se um hospital de campanha; no Instituto de Educação um IML é
improvisado. Um médico pede um pouco de pomada descongestionante, pois o
cheiro dos corpos já em decomposição começa a se tornar insuportável, e se
espalha por toda a cidade.
Uma grande caixa d’água se rompe num bairro afastado. A notícia ganha
proporções catastróficas no boca-a-boca de uma população apavorada.
Interfone e telefone tocam ao mesmo tempo. “Corre que a represa rompeu, vai
inundar a cidade inteira, a água vai chegar até o segundo andar”. Bombeiros
apavorados sobem em caminhões, doentes são transportados para os andares
superiores de hospitais improvisados, pessoas são pisoteadas e atropeladas,
ou brigam ferozmente por uma vaga nos caminhões que abandonam o centro à
toda velocidade.
Não haveria volume d’água na maior represa da cidade que fosse suficiente
para causar nem um milésimo do que era alertado, mas pouca gente consegue
pensar calmamente quando até mesmo os militares estão em pânico. Alarme
falso, terror real.
De outro lado, a esperança.
Caminhões com donativos começam a chegar um após o outro, enquanto pessoas
surgem de todas as cidades dispostas a ajudar. Os telefones começam a tocar
timidamente, ainda é difícil conseguir contato. Do outro lado da linha
vozes amigas choram de alívio a cada alô.
Boas notícias surgem, de vez em quando. Existem sobreviventes, algumas
pessoas são resgatadas com vida. Em Friburgo, no bairro de Duas Pedras, o
morador da casa mais alta, próxima à Fundação Getúlio Vargas, sente a
estrutura de sua casa balançar e sai de imediato. Desce a rua no escuro e
debaixo de chuva dando o alarme do desabamento iminente aos seus vizinhos.
O morro desaba, mas nenhuma vida se perde ali. Herói da vida real, prefere
o anonimato.
O trabalho no voluntariado consola e renova. A sensação inigualável de
servir e ser útil, a admiração por ver pessoas de fora trabalhando tanto ou
mais que nós, os interessados. Descarregar um caminhão dá muito mais
trabalho do que parece, descobrimos isso rapidamente. E imaginar que, em
algum lugar do Brasil, este mesmo trabalho estafante foi feito com alegria
por pessoas que nem sequer nos conhecem…
A ajuda material é, a um só tempo, útil e simbólica, pois carrega em si uma
mensagem invisível. Sacia as necessidades do corpo, cura as doenças da
alma. Uma garrafa d’água não é só uma garrafa d’água. É uma declaração de
amor e de apoio, de alguém que saiu de casa e foi comprar, levou para o
posto de coleta, onde pessoas com amor carregaram o caminhão. É, portanto,
material sagrado. É sacrifício do povo, é atitude, é gente comendo menos
para que outros possam comer alguma coisa. É carinho materializado.
Nos hemocentros, filas se formam com doadores. Doadores de sangue, doadores
de vida. Gente que literalmente deseja dar parte de si mesmo ao próximo.
Impossível se manter o mesmo diante de tantas forças, sejam elas tristes ou
bonitas. De certo modo, é justo dizer que todos nós morremos debaixo do
lamaçal. Não somos mais os mesmos, nem temos o direito de ser.
A consciência sobre as bênçãos e responsabilidades de simplesmente estar
vivo se amplia indefinidamente. Continuamos aqui, por algum motivo. Estamos
sendo abraçados, protegidos. É preciso justificar isso, é preciso
trabalhar, honrar os que se foram, e os que estão ajudando. A vida nos deu
uma página em branco. É preciso reconstruir, e fazer uma cidade melhor e
mais segura do que antes. É preciso renascer, tornar-se uma pessoa melhor e
menos alienada, abandonar o superficial e voltar os olhos ao essencial. É
preciso ajudar a quem precisa, dividir o que se tem. Há que brotar vida
verdadeira desta mesma lama, adubada por tantos amigos inesquecíveis que
por lá pereceram.
A luz voltou, e os jornais falam em tragédia anunciada. Meia verdade. Em
Petrópolis e Teresópolis choveram 130 mm. Em Friburgo foram 182. Em algumas
cidades a tragédia de fato se concentrou em bairros periféricos e casas em
locais de maior risco. Em Friburgo, reservas naturais e mansões desabaram
da mesma forma. Casas de classe média alta, a 200 metros de encostas, foram
soterradas. Não houve distinção. Falar em drenagem ou muros de contenção
diante de tamanha potência é fazer piada de mau gosto. Útil, sim, seria um
plano diretor livre de demagogias, e um sistema de alarme eficiente, como o
herói anônimo de Duas Pedras.
Chega o domingo, e com ele os primeiros raios de sol. Faz um dia bonito,
apesar da poeira, e quando começa a anoitecer o céu assume uma coloração
azul deslumbrante. Uma leve brisa sopra pelas ruas desertas, e, por um
instante, as sirenes dão uma trégua. Fecho os olhos por alguns segundos
torno a abri-los. Perco o olhar nas estrelas e me deixo levar. Em minha
cabeça ouço nitidamente a voz vigorosa de Renato Russo cantando.
“Mas é claro que o sol vai voltar amanhã…”
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