O dom de ser negroUma
música na voz de Marvin Gaye ressoa na sala. O ringtone do celular não
poderia ser mais adequado. Afinal, o dono do aparelho é o engenheiro,
DJ, videomaker e produtor, Filó, ou Dom Filó, nome de guerra, por assim
dizer, de Asfilófio de Oliveira Filho, alguém cuja história profissional
e de vida está estreitamente ligada a momentos áureos de celebração da
força da cultura black no BrasilPor Sandra Almada
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Filó e sua câmera, registros marcantes da cultura negra e de momentos políticos importantes |
Celebração, é importante também frisar, que nos anos 1960 e
1970 era, no Rio de Janeiro, terra natal de Filó, quase sinônimo de soul
music. Ritmo do qual ele, ainda rapazinho, tornou-se amante apaixonado e
devoto. Era uma época em que, assumir uma atitude negra era algo
estimulado tanto por ativistas políticos, quanto por aqueles que,
ligados ao mundo do showbizz, difundiam pelo planeta a exuberância da
cultura afro-americana, com seus ícones poderosos ligados à black music.
Naqueles anos, o estudante de engenharia civil, quando fora
da universidade - onde, aliás, sua figura era considerada "fora do
padrão dos demais" - assumia sua identidade negra em sintonia com a
estética e as utopias políticas e libertárias, típicas dos inigualáveis
anos 1960/70. E, sobretudo, sintonizada com a vanguarda jovem negra
norte-americana do seu tempo. Filó começava a usar um lugar
"privilegiado," para arregimentar o sonho de milhares de jovens negros
como ele. Isto, quando o Brasil vivia uma feroz ditadura militar, e os
órgãos de repressão já estavam infiltrados nos movimentos negros em fase
de grande potência àquela época. Como ele fazia isto? Filó começa a
contar sua história. "Minha faculdade, a Souza Marques, era de
propriedade de uma família negra. Mas lá, entre os 43 alunos da turma,
só havia quatro negros. Eu e outros três, todos eles militares. Eu com
meu cabelo black power - e, às vezes, com tranças de barbante- tamanco,
bolsa de pano, calças pantalonas. Era 'hippie'. Morava no Jacaré
(comunidade da zona norte carioca), mas rodava por tudo quanto era
lugar. Isto porque meu pai, um excelente vendedor, tornou-se dono de uma
agência de automóveis, numa época em que não havia nem sequer
concessionária. E quando eu fiz 18 anos me deu carro". Foi o passaporte
para a liberdade para Filó, mas quando o pai do rapaz disse "te dou o
carro, mas o dinheiro você faz", continuou a apostar na responsabilidade
sobre si que o filho tinha que continuar a nutrir. Até porque, aos 14
anos, Filó já cuidava de forma competente da contabilidade dos negócios
do pai.
Para fazer o carro andar e poder circular na noite da zona
norte à zona sul da cidade, sempre na direção de diversão black de
qualidade, Filó "comprava e revendia calça Lee e perfume Lancaster",
lembra com orgulho. "Em 1972 passei a integrar a diretoria do Clube
Renascença. Assumi junto com o ator Aroldo de Oliveira. Éramos jovens,
ligados à noite. Também era sócio-atleta do Clube Bola Preta, mas só
para entrar nos bailes", conta, com um sorriso. "Eu, de carro, me
deslocava tanto para os bailes de grupos musicais como o Copa Sete,
Devaneios, Lafayete, The Pops, na zona norte, como para o Beco da Fome,
na zona sul da cidade, onde se reuniam artistas e conheci gente como
Jorge Ben Jor, Tim Maia , entre muitos outros. Minha identificação era
com os bailes de dança de salão, mas isto antes de conhecer o soul",
esclarece Filó. A soul music, sua paixão confessa e de milhões de
pessoas no mundo todo, é um gênero de música popular que nasceu nos EUA
da década de 1950 entre os negros, originário do rhythm and blues e do
gospel. "Soul" também servia de vocábulo cuja significação era
"afro-americano". Então, a música soul designava, naquela época, a
música dos negros, independente do gênero. Bom observador, nas boates da
zona sul carioca, Filó começou a prestar atenção ao que saía de caixas
de som e amplificadores pra manter a moçada dançando na pista. "Eu
chegava às boates da moda junto com uma negrada. O que percebia é que
70% da noite se 'movimentava' com música negra concebida por brancos.
Grupos como KC and The Sunshine Band, Chicago, AWB. A música era 100%
negra nas boates - sobretudo naquelas que também colocavam composições
de grupos e artistas negros - mas os DJs eram todos brancos.
O cenário incomodou, evidentemente, o jovem e inteligente
notívago, a esta época já "tomado" de consciência racial e totalmente
seduzido pela "forma americanizada" de afirmar a negritude, como
criticava uma parte da militância negra brasileira defensora de um certo
nacionalismo. "Eu adorava estas referências norte-americanas e acabei
criando nossos próprios bailes, e o que era considerado 'lixo' - criado
por artistas negros - nas boates da moda, era o sucesso da Noite do
Shaft no Renascença Clube", relembra Filó. Mas antes de enveredar pela
produção dos bailes black embalados pela soul music, aqueles mesmos que,
do "Rena" - nome carinhoso dado ao clube Renascença por seus
frequentadores - saltaram para vários outros clubes da cidade, ele já
havia mostrado sua vocação inegável para as coisas da música, dos
eventos noturnos. "Tínhamos um grupo de samba chamado Embalo Sete e o
levamos lá para o Clube Bola Preta. Em seguida, fomos com eles para o
Renascença. Nascia ali a primeira roda de samba do Rio de Janeiro. Lá
'surgiram' grandes nomes do gênero como Roberto Ribeiro, Martinho da
Vila, Emílio Santiago. Era tudo comandado pela divina Beth Carvalho",
recorda-se Filó, com o orgulho de quem sabe que ajudou a fazer história.
Mais do que interesses financeiros, ele e sua turma queriam interferir
no rumo da história do povo negro. E, se na época existiam várias formas
de militância (nos EUA, a luta armada dos Panteras Negras, entre elas),
Don Filó apostou na cultura como pedra de toque de um grande movimento
pela valorização da identidade e da cultura negras, mais tarde chamado
de Movimento Black Rio.
FOI BEBER NA FONTE
Para criar a Noite do Shaft, Filó assume que o formato do baile
surgiu a partir do que via nos bailes do Mister Funk Santos. Foi o
primeiro DJ que o inspirou, só tocava música negra. Se os adultos
estavam contentes com o entretenimento oferecido pela Roda de Samba do
Rena, o que dizer dos jovens das comunidades dos morros do Macacos,
Salgueiro, Andaraí, Borel e Mangueira? "Todas estas comunidades giravam
no entorno do Renascença. Como, então, atrair seus jovens? Fizemos uma
parceria com o Instituto de Cultura Brasil Alemanha (ICBA) que levou
projetos e música negra, uma 'parada' de negão para o Renascença,
entretanto, antes de ouvir música, fazíamos palestras para a população.
Dali surgiu o Baile", recorda.
A Noite do Shaft tornou-se uma referência na história do
movimento negro brasileiro e internacional. Teve tanto êxito, que levou
Filó a criar a equipe de som que ficou conhecida como Soul Grand Prix,
uma das mais bem-sucedidas do gênero. Na esteira de seu sucesso veio o
convite pelo famoso executivo da Warner, André Midani, para produzir um
disco. Proposta: o que tocava com sucesso no Rena e em outros tantos
clubes do Rio de Janeiro migrava para o LP da equipe de Som de Don Filó.
Outro êxito do jovem produtor foi o convite para criar a Banda Black
Rio, mais um megassucesso."Nós tocávamos nas rádios. Nas vendas
encostávamos no Roberto Carlos. A mídia nos descobriu." No meio disso
tudo, como estava a faculdade de engenharia? Bem, Filó, no segundo ano,
resolveu transferir-se para a Engenharia Mecânica. Pouco enquadrado nos
padrões da universidade, certo dia foi chamado às falas pela direção da
faculdade. Ficar reprovado naquela época era um demérito. "Fui chamado
para ouvir que só iria fazer prova se me ajustasse. Mudei então o
visual. Abaixei - não cortei, viu?! - o cabelo, comecei a usar camisa de
baylon e calça careta. Consegui fazer a prova e passei!
A "vingança" veio na formatura. Naquela época, todas as
formaturas de cursos universitários eram realizadas no Maracanã. " No
dia da cerimônia entrei com a beca, mas debaixo dela estava com um terno
todo branco. Levava também comigo uma cartola branca, uma roupa
semelhante à que o Toni Tornado usava. Na hora de receber o diploma,
levantei as mãos, fechei os punhos e fiz o símbolo do movimento Black
Power", revela.
Depois disto, passou por alguns empregos em firmas de sua
área de formação. E nos bailes, valorizava muito a educação. "'Eu
estudei. E você?', dizia ele, entre uma música e outra, enquanto na tela
eram projetadas imagens de negros dos quais todos tinham orgulho. "Até
hoje há pessoas que falam o seguinte para o meu filho: 'Eu tenho a vida
que tenho, a carreira que tenho, porque escutei uma destas mensagens que
seu pai mandava nos bailes e que me tocou'."
Em 1896, Filó, enfim resolveu seguir aquilo que dizia sua
intuição. "Joguei tudo para o alto e fui seguir minha outra sua vocação.
Já tinha feito vários cursos: Contabilidade, Gestão e Liderança, até
que descobri a área da Comunicação e fui para a Escola Superior de
Propaganda e Marketing." De lá para cá, investiu e passou a ganhar
reconhecimento no âmbito profissional com aquilo que era, anteriormente,
um talento nato. Criou em 1988 a produtora a Cor da Pele e, de lá em
diante, começou a dar contornos embrionários a um dos projetos mais
interessantes voltados para o registro da história negro-brasileira, o
Cultne (leia boxe).
Antes, porém, viajou aos Estados Unidos. Foi 'beber na
fonte', conhecer o país onde se originara a cultura e os movimentos de
conscientização negra que tanto admirava. "Viajei e vim com duas malas
de equipamentos. Além de ter aprendido muito com os negões americanos",
diz Filó. Na bagagem, uma câmera VHS passaria a ser o equipamento com o
qual ele assumiria, oficialmente, além de profissional da área de
marketing, as funções de videomaker. Naquele anos 1980 foram vários,
então, os registros audiovisuais assinados por Filó. Entre eles, a
estreia da equipe de atletismo da Escola de Samba Mangueira e as
atividades da comitiva brasileira na Conferência de Durban, em 2001.
Numa destas filmagens conheceu Pelé. Alguns anos depois, ao
assumir o cargo de Ministro Extraordinário do Esporte, o "rei"
lembrou-se do profissional e o convidou para integrar sua equipe em
Brasília. Mais uma vez, as qualidades de exímio comunicador - agora
fascinado com o uso da imagem -, foram exploradas. "Me orgulho, entre
outras coisas, de termos valorizado, de maneira até então inédita, os
Jogos Para-olímpicos, que ocorreram 10 dias após as Olimpíadas de
Atlanta, em 1996, e eram antes depreciados", conta.
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Acervo Digital da Cultura Negra (Cultne), conteúdo diversificado e histórico na internet
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A UM CLIQUE DE TUDO
Que tal assistir à chegada, no ano de 1991, de Nelson
Mandela ao Brasil? Pronunciamentos de grande impacto de militantes
negros numa das manifestações do Movimento Diretas Já! (1983-1984) são
de seu interesse? Prefere acompanhar a visita de Bob Marley ao nosso
país, nos anos 1970?
Ou lhe agrada mais ver cenas dos bastidores da gravação
do videoclipe da música They don´t really care about us, de Michael
Jackson, na Bahia (com participação especial do Olodum e com o cineasta
Spike Lee no comando)? Nada disso?! Bom, então que tal uma passagem pela
Noite da Beleza Negra no bloco afro-baiano Ilê Ayê, com Caetano Veloso,
Gilberto Gil e os cantores do grupo no palco? Há também cenas de
cerimônias de religiões de matriz africana.
O cardápio de alternativas para quem quer, com um simples
clique, acessar imagens do Acervo Digital de Cultura Negra (Cultne) -
lançado em 2010 - é grande e dos mais variados. A ideia de fazer um
inventário dos registros audiovisuais de momentos importantes do
ativismo político cultural dos negros do Brasil e de demais países da
diáspora africana é uma criação do produtor Filó, com os parceiros Vick
Birkbeck, Maurício Eiras, David Obadia e Pedro Oliveira, filho do
produtor. Mas as imagens são fruto de um trabalho que começou bem antes,
realizado por duas produtoras. Uma elas é a Cor da Pele, do próprio
Filó. São dela os créditos dos vários registros armazenados e
organizados no site da Cultne (
www.cultne.com.br).
Outros tantos postados no site têm a marca de outra produtora, a
Enúgbarijó Comunicações, criada por Ras Adauto e Vick Birkbeck. O
quarteto Filó, Medeiros, Adauto e Vick integram, separadamente, o grupo
de videomakers que surge, nos anos 1980, a partir do advento das câmeras
portáteis digitais. "Este material foi todo ele produzido em fita VHS.
As duas produtoras não existem mais, mas o acervo está preservado.
Com o passar dos anos, entretanto, este material começou a
se deteriorar. Mas mesmo que algumas estejam mofadas, o que se consegue
extrair delas é ouro", avalia Filó.
Ele estima que, somadas, são cerca de mil horas de
gravação, mas que apenas 20% deste acervo está disponibilizado no site
da Cultne Cultne. Filó acrescenta que ainda é grande o esforço para a
obtenção de recursos de modo a continuar o processo de conversão das
fitas e postagem. "Em 2009, conseguimos recursos junto à Secretaria
Estadual de Ação Social, dirigida, na ocasião, por Benedita da Silva.
De lá pra cá, há ainda muito o que fazer, mas vamos em
frente!" Tamanho entusiasmo faz todo o sentido. A primeira razão é que,
ao permitir o acesso e o download de seus vídeos, a Cultne vem
contribuindo para que, nestes tempos marcados pela revolução digital, um
número crescente de pessoas passe a conhecer aspectos da história do
Brasil, do ponto de vista de uma parcela da população cuja trajetória e
feitos se encontram fora dos livros didáticos, ou neles são apresentados
de forma distorcida.
NO BRASIL, O ACESSO AO CONTEÚDO MAIS POLÍTICO DOS
MOVIMENTOS NEGROS CRESCE EXPRESSIVAMENTE, MAS DE FORMA PONTUAL, EM DATAS
COMO 13 DE MAIO E 20 DE NOVEMBRO
Outro bom motivo para manter a animação é que hoje existe
lei federal que determina a obrigatoriedade das emissoras de canal de
TV fechado de veicular produções nacionais. O produtor está à busca de
recursos para a produção de um longa-metragem que reúna momentos
importantes registrados neste legado do movimento negro. "Os canais têm
que investir na compra de produtos audiovisuais e isto é muito
interessante para nós negros", diz.
Mas quais são os vídeos mais procurados no site da
Cultne? Dos cinco principais views (itens acessados pelos internautas), o
último é o dos movimentos negros. Na dianteira estão os de black music e
samba. "Pra criar este acervo tivemos como referência o teor do Black
Power Mix Tapes, feito por meio do acervo de uma tevê sueca com registro
do período em que o ativista Stokely Carmichael esteve exilado lá. Aqui
no Brasil, o acesso ao conteúdo mais político dos movimentos negros
cresce expressivamente, mas de forma pontual, em datas como 13 de Maio e
20 de Novembro. Mas, se colocamos Lecy Brandão, o acesso é altíssimo,
em qualquer época, se comparado a estes outros views, informa o
produtor. "As pessoas ainda não estão dando valor. Mas lá na frente vão
se dar conta do quanto é importante e valioso, com um click, conhecer,
por exemplo, a história da Frente Negra Brasileira ou acompanhar a
Marcha do Movimento Negro na qual os militantes foram barrados pela
polícia em frente ao busto de Duque de Caxias, no centro do Rio de
Janeiro!", explica Filó.